A anamnese como raiz do conhecimento
Até agora falamos do mundo inteligível, de sua estrutura e do modo pelo qual ele incide sobre o sensível. Resta examinar de que forma pode o homem ter acesso ao inteligível.
O problema do conhecimento já fora de algum modo ventilado por todos os filósofos precedentes. Não se pode, porém, afirmar que algum pensador anterior a Platão o tenha proposto de forma específica e definitiva. Platão foi o primeiro a propô-lo em toda a sua clareza, graças às aquisições estruturalmente ligadas à grande descoberta do mundo inteligível, muito embora, como é óbvio, as soluções por ele propostas se revelem, em grande parte, aporéticas.
A primeira resposta ao problema do conhecimento se encontra no Menon. Os eristas tentaram capciosamente bloquear a questão, sustentando a impossibilidade da pesquisa e do conhecimento. De fato, é impossível investigar e conhecer aquilo que ainda não se conhece, porquanto, mesmo que se viesse a descobri-lo, seria impossível identificá-lo, pois faltaria o meio para a realização da identificação. Por outro lado, é impossível vir a conhecer aquilo que já se conhece, precisamente porque ele já é conhecido.
Exatamente para superar essa aporia é que Platão descobre um caminho totalmente novo: o conhecimento é “anamnese”, ou seja, uma forma de “recordação” daquilo que já existe desde sempre no interior de nossa alma.
O Menon apresenta essa doutrina sob dupla forma: uma de caráter mítico e outra dialética. E importante examiná-las para não nos arriscarmos a trair o pensamento platônico.
A primeira forma, de caráter mítico-religioso, vincula-se às doutrinas órfico-pitagóricas, segundo as quais, como sabemos, a alma é imortal e renasce muitas vezes. Conseqüentemente, a alma viu e conheceu toda a realidade, a realidade do outro mundo e a realidade deste mundo. Sendo assim, conclui Platão, é fácil compreender que a alma pode conhecer: ela deve extrair de si mesma a verdade que já possui desde sempre; e esse “extrair de si mesma” é “recordar”.
Entretanto, logo em seguida, no Menon, as posições se invertem: o que se apresentava como conclusão transforma-seem interpretação filosófica de um fato experimental comprovado, ao passo que aquilo que antes era pressuposto mitológico com função de fundamento toma-se conclusão. De fato, após a exposição mitológica, Platão realiza uma “experiência maiêutica”: interroga um escravo ignorante de geometria e consegue fazer com que ele, apenas através do método socrático da interrogação, resolva um complexo problema de geometria (implicando basicamente o teorema de Pitágoras). Logo — argumenta Platão —, como o escravo nada aprendera de geometria antes e como ninguém lhe fornecera a solução, a partir da constatação de que ele a soube encontrar por si mesmo, não resta senão concluir que a extraiu de dentro de si mesmo, de sua própria alma, isto é, recordou-se dela. Aqui, como transparece claramente, a base da argumentação, longe de ser um mito, é a constatação de um fato: o escravo como qualquer pessoa em geral, pode extrair de si mesmo verdades que antes não conhecia e que ninguém lhe ensinou.
Os estudiosos do pensamento platônico têm freqüentemente escrito que a doutrina da anamnese surgiu em Platão através de influências órfico-pitagóricas. Ao término de nossa explicação, porém, fica claro que a maiêutica socráticarepresentou pelo menos um peso idêntico na gênese dessa doutrina. Com efeito para que se possa maieuticamente fazer surgir da alma a verdade, é evidentemente imprescindível que a verdade esteja presente na alma. Assim, a doutrina da anamnese, além de representar o corolário da doutrina dametempsicose órfico-pitagórica, se propõe também como a justificação e a realização factual da própria possibilidade da maiêutica socrática.
No Fédon, Platão apresentou uma nova confirmação da anamnese apelando especialmente para os conhecimentos matemáticos (que desempenharam papel extremamente importante na descoberta do inteligível). Argumenta fundamentalmente Platão: com os sentidos, constatamos a existência de coisas iguais, maiores e menores, quadradas,circulares e outras semelhantes. Entretanto, com atenta reflexão, descobrimos que os dados que a experiência nos fornece — todos os dados, sem exceção — não se equacionam jamais, de maneira perfeita, com as noções corres-pondentes que indiscutivelmente possuímos: nenhuma coisa sensível é “perfeitamente” e “absolutamente” quadrada ou circular, mesmo que possuamos noções de igual, de quadrado e de círculo “absolutamente perfeitos”. Então, é necessário concluir que existe um certo desnível entre os dados da experiência e as noções que possuímos: as noções contêm algo mais do que os dados da experiência. Qual a origem, porém, desse algo mais? Se, como vimos, ele não deriva nem pode estruturalmente derivar dos sentidos, isto é, de fora, não podemos deixar de concluir que sua origem está dentro de nós. Entretanto, ele não pode provir de dentro de nós como criação do sujeito pensante, pois o sujeito pensante não “cria” esse algo mais, apenas o “encontra” e o “descobre”; ele, ao contrário, se impõe ao sujeito objetivamente de forma absoluta, independentemente de qualquer poder do sujeito. Conseqüentemente, os sentidos nos proporcionam apenas conhecimentos imperfeitos. Nossa mente (nosso intelecto), ao se deparar com os dados dos sentidos, voltando-se para a própria profundeza, quase dobrando- se sobre si mesma, encontra neles a ocasião para descobrir em si os conhecimentos perfeitos correspondentes. E, visto que não os produz, não resta senão concluir que ela os encontra em si e os extrai de si como algo “originariamente possuído”, ou seja, deles “se recorda”.
O mesmo raciocínio Platão repete a propósito das várias noções estéticas e éticas (belo, justo, bom, santo etc.), que, por aquele algo mais que possuem em relação à experiência sensorial, não podem ser explicadas senão através da presença em nossafllmfl daquele algo que elas originariamente possuem e do qual se lembram, ou seja, como reminiscência. E a reminiscência supõe estruturalmente uma marca impressa na alma pela Idéia, uma “visão” metafísica originária do mundo das Idéias, que sempre permanece, embora velada, na alma de cada um de nós.
Platão sempre manteve essa doutrina e sobre ela insistiu, tanto no Fedro quanto no tardio Timeu.
Alguém, estudando o pensamento platônico, entreviu na reminiscência das Idéias a primeira descoberta ocidental do a priori. Tal expressão, recordando-se que não é de origemplatônica, pode certamente ser usada, com a condição de ser entendida não como o a priori de tipo subjetivista-kantiano mas como a priori em sentido objetivo. Na verdade, as Idéiassão realidades objetivas absolutas que, através da anamnese, se impõem à mente como objeto. Como, na reminiscência, a mente apenas capta e não produz as Idéias, captando-asindependentemente da experiência (embora com o concurso da experiência, porquanto necessitamos ver as coisas sensíveis iguais para nos “recordarmos” do Igual em si), é possível falarmos de descoberta do a priori (ou seja, da presença de conhecimentos puros no homem, independentemente da experiência) ou ainda de primeira concepção do a priori na história da filosofia ocidental.