Os paradoxos da "fuga do corpo” e da “fuga do mundo” e seu significado
Examinemos agora, os dois paradoxos mais conhecidos da ética platônica, freqüentemente entendidos de formaincorreta pelo fato de que se atentou mais para a sua fisionomia matizada pelos tons místicos dos mistérios órficos do que para a sua fundamentação metafísica. Estamos nos referindo aos dois paradoxos da “fuga do corpo” e da “fuga do mundo”.
1) O primeiro paradoxo recebe tratamento especial no Fédon. A alma deve procurar fugir sempre mais do corpo. Por isso, o verdadeiro filósofo deseja a morte e a verdadeira filosofia é “exercício de morte”. O sentido desse paradoxo se manifesta de forma extremamente clara. A morte representa um episódio que, ontolo- gicamente, refere-se exclusivamente ao corpo. Ela não apenas não causa dano à alma, mas, ao contrário, lhe traz grande benefício, permitindo-lhe viver uma vida mais verdadeira, uma vida voltada para si mesma, sem obstáculos e anteparos, inteiramente tinida ao inteligível. Isso significa que a morte do corpo representa a abertura para a verdadeira vida da alma. O sentido do paradoxo, portanto, não muda com a inversão de sua formulação. Pelo contrário, toma-se mais preciso: o filósofo é aquele que deseja a verdadeira vida (= morte do corpo) e a filosofia é treino para a vida autêntica, para a vida na dimensão exclusiva do espírito. A “fuga do corpo” comporta o reencontro do espírito.
2) O significado do segundo paradoxo, o da “fuga do mundo”, também é claro. De resto, o próprio Platão, de forma totalmente explícita, desvenda esse significado ao nos explicar que fugir do mundo significa tomar-se virtuoso e assemelhar-se a Deus: “O mal não pode desaparecer, pois sempre haverá de existir algo oposto e contrário ao bem; não pode igualmente habitar entre os deuses, mas deve necessariamente residir nesta terra, junto de nossa natureza mortal. Eis a razão pela qual tudo devemos fazer para fugir o quanto antes daqui e irmos lá para cima. Esse fugir consiste em nos assemelharmos a Deus na medida maior de nossas possibilidades humanas. Assemelhar-se a Deus é adquirir justiça, santidade e sabedoria.”
Como se vê, os dois paradoxos possuem significado idêntico: fugir do corpo significa fugir do mal do corpo mediante a virtude e o conhecimento; fugir do mundo significa fugir do mal que o mundo representa, sempre realizando essa fuga através da virtude e do conhecimento; praticar a virtude e dedicar-se ao conhecimento significa tornar-se semelhante a Deus, o qual, como se afirma em As Leis, é “medida” de todas as coisas.